Atravessar a Ponte: A Transição de Carreira como Ritual de Individuação
- agdagalvaopsic
- 17 de abr.
- 4 min de leitura
Hoje me peguei pensando sobre o tema “mudar de carreira” e no instante seguinte imaginei: oras, como Jung pensaria sobre isso?
Claro que aqui vamos trabalhar a partir de nossa fantasia sobre o que Jung pensaria, ou qual o movimento que ele faria em torno do tema, mas intuo que ele refletiria no sentido de que, a mudança de carreira seria muito mais do que uma decisão racional ou estratégica.
Seria um movimento profundo da psique, frequentemente iniciado por um chamado interior, que sinalizaria que a vida — como está — já não basta à alma.
Foi então que reconheci a origem daquele meu pensamento... uma provocação feita por Daniel Gomes[1], importante Analista Junguiano e Supervisor, que frequentemente instiga reflexões em nós, seus supervisionados. Uma delas foi:
— “Quando estiverem refletindo sobre alguma questão, pensem: Como Jung pensaria sobre isso? Como Jung veria esta questão?”
Jung poderia ver esse chamado como um desejo antigo que finalmente encontrasse espaço para florescer. Ou poderia emergir da angústia, do tédio, do esgotamento... de uma desconexão silenciosa — um sentimento de vazio que mal sabemos nomear, mas que insiste em nos habitar.
De toda forma, seriam os sintomas do Self pedindo passagem — sinais de que o ego está desalinhado com o centro regulador da psique, e que algo em nós deseja nascer.
Ao longo da vida, construímos uma persona — a máscara social que nos permite funcionar no mundo. Ela é necessária, mas quando se torna rígida demais, nos aprisiona.
Uma carreira que antes fazia sentido pode se tornar uma armadura: segura por fora, mas sufocante por dentro.
Durante a transição de carreira, essa persona começa a se desestabilizar — e isso pode ser assustador. Podemos até sentir como se estivéssemos perdendo a nós mesmos... Quando, na verdade, estamos nos aproximando de algo mais essencial e significativo.
O velho papel social se desfaz para que um novo sentido possa emergir.
Esse processo, como todo verdadeiro rito de passagem, pode nos colocar frente a frente com a sombra: os medos, os fracassos, as dúvidas e tudo o que reprimimos em nome da adaptação.
Às vezes, é nesse momento que surgem pensamentos conscientes, carregados de crenças limitantes: "não sou bom o suficiente", "é tarde demais”, “ninguém vai me aceitar assim”.
Reconhecemos essas vozes — sabemos nomeá-las. Mas, por trás delas, habitam forças mais sutis, inconscientes, que silenciosamente resistem à mudança.
Não se trata apenas de pensar diferente, mas de tocar aquilo que, em silêncio, ainda teme, ainda hesita.
É nesse ponto que o trabalho do terapeuta se torna essencial: ajudar a pessoa a reconhecer e integrar aspectos de suas dimensões internas que, inconscientemente, dificultam sua movimentação em direção à vida.
Quando esse reencontro acontece — quando esta ponte se estabelece —, algo profundo se realinha e a existência, antes presa em velhas formas, liberta-se e volta a respirar.
Jung chamaria essa jornada de um movimento do Self — o arquétipo central da psique, que orienta nossa totalidade em direção à realização interior.
A transição de carreira, nesse contexto, pode ser entendida como uma etapa do processo de individuação: a lenta e contínua aproximação de quem realmente somos, para além das expectativas alheias.
Não se trata de “abandonar tudo” ou “começar do zero” — até porque nunca começamos do zero na medida em que chegamos com toda nossa bagagem de vida pessoal e profissional; é sobre reconhecer que, em certos momentos da vida, a alma pede novos contornos. Um novo fazer, mais enraizado no ser.
Psicologicamente, esse processo é semelhante ao arquétipo da morte e renascimento. Há uma descida simbólica: o ego cede, a antiga identidade é confrontada, somos convidados a atravessar um tempo de incertezas — um “inverno interior”. Só então algo novo pode emergir com mais verdade, mais coerência com a essência.
A transição de carreira pode também ser vista como uma versão moderna da jornada do herói: o chamado, a recusa inicial, os testes, os mestres, o enfrentamento dos próprios medos, até o encontro com um novo propósito.
Mas essa jornada não é para fora — é para dentro.
E seu maior prêmio não é um cargo novo, mas um encontro mais autêntico consigo mesmo.
Enfim, exercitando o que foi proposto pelo nosso Supervisor Daniel Gomes, fico aqui a imaginar que Jung talvez pensasse...
... A alma não quer apenas um currículo renovado. Ela quer sentir. Ela quer atuar de forma renovada. Ela aposta em si, em sua nova jornada. A alma não se aposenta — ela precisa continuar se sentindo útil tanto para o outro quanto para si própria, dentro de seu processo de individuação
É nesta jornada, quando nos despimos das certezas e nos abrimos para o mistério de sermos inteiros, que algo profundo se realinha dentro de nós.
É aí que o ego deixa de resistir e começa a colaborar com o Self...
É aí que o fazer se alinha com o ser.
E então, a travessia se torna caminho.
E o trabalho, um modo de viver com alma.
Agda Galvão
Psicoterapeuta Junguiana
[1] GOMES, Daniel — Analista e Supervisor Junguiano; criador do Programa In Sonhos, método de análise junguiana de sonhos;
Profundo, simbólico, sensível. Impecável e admirável! Amo seu trabalho e suas publicações Agda. Amei esse texto, representa um período simbólico e arquetípico do chamado para travessia da Alma! "É aí que o ego deixa de resistir e começa a colaborar com o Self...
É aí que o fazer se alinha com o ser.
E então, a travessia se torna caminho.
E o trabalho, um modo de viver com alma." Agda Galvão